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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O Forro do Armazém: texto sobre a exposição no Ateliê Funilaria e Pintura.

















O Forro do Armazém
Sobre xilogravura no Ateliê Funilaria e Pintura.

1. A xilogravura é a arte do sólido. É a arte do encontro com a matéria-corte no tabuleiro da estampa. Uma matemática, uma biologia nos labirintos onde surgem as imagens. É a oportunidade de moldar tudo no equilíbrio dos negros e dos brancos. Durante a travessia, a madeira faz o artista perceber o espaço do seu corpo e da sua mente no livro-matriz profundamente gravado. O corte é um barco transportando o espírito do gravador até a ilha dos mortos. Ali ele vive entre camadas e montanhas que um dia, conduziram para a árvore uma energia vital. Participa de sua paisagem cheirando épocas anteriores ao seu nascimento. Rompe pelo impacto de luz os lugares onde os espíritos estão adormecidos. Por que a matriz de madeira é uma caixa contendo inúmeras criaturas dormentes. As passagens das estações são fixadas nas fibras como um arco íris castanho no mundo onde a água e os sais minerais, produzem a sua lavoura. Os artistas entalhadores se alimentam do tempo. O tempo nasce irradiando as suas manchas. Nasce na aguada para ganhar o ar assim que a madeira é cortada e dividida em tábuas. O que observamos nos veios como manchas são na verdade, aquarelas que a seiva e os sais produziram na qualidade do tempo. O tempo é um hospedeiro nos ombros de Merlin observando as árvores crescerem em busca da luz na atmosfera, construindo um delicado abraço na copa, administrando os jogos variáveis das formas geométricas. O tempo é a fonte de um verdadeiro quebra-cabeça que divide a claridade.

2. O tempo é o vento? O tempo é o dia e a noite ou envelhecimento da pele sob o sol? Percebemos a sua passagem nas coisas vivas. A caricia das folhas na copa pelo vento-tempo é o pedido para o pouso deste viajante invisível, que está no nascimento e na morte dos ângulos da matriz.

3. Na árvore existe o peso, mas um peso que só os pássaros estão acostumados a lidar. O gravador busca isso ao realizar o trabalho de entalhe, mesmo que sem querer. Busca o vôo da certeza num veio ou uma panorâmica da imagem submersa nas fibras, observando o dorso volumoso e prateado de um peixe na visão fantástica de um pescador. Busca o peso do tempo. A realização do desbaste é a uma espécie antiga de tempo-movimento em ondas de gravidade. A mesma força que balança os galhos são como bandeiras nas mãos dos soldados na invasão de um castelo. Os desbastes, as pancadas, o resultado desta força são escamas, folhas, pêlos, grãos, manchas, mandíbulas, algo em processo agindo em conjunto na superfície por agressividade e beleza, que consomem uma estrutura por mordidas. Difícil definir. Penso na ação. Penso na ossada deixada por esta ação. A fome pelo ventre das coisas é momentaneamente saciada.

4. Nas árvores muitos ninhos caem com a passagem de uma tempestade. O vento quebra os galhos abrindo varandas para os cupins enquanto que as raízes, entre canos e dormentes, procuram os mortos no solo destroçando as calçadas. As árvores querem andar dentro de suas baias de concreto. Tombam. E as pessoas se assustam com a tentativa após tropeçarem! Um mundo de sonhos está no modo de expressar a cidade de São Paulo pela xilogravura (a arte de convergir o tempo em formas). Os ventos (um dos agentes do Sudeste) animam as árvores e as árvores produzem o registro do tempo. Parece que tudo é sentido na vibração de uma máquina bem estranha. Uma locomotiva cujo destino e itinerário é um segredo guardado pelo maquinista: o sol. Ventos, seivas, veios, vidas. As árvores são movidas por energia eólica?
Que tecnologia contemporânea! No ateliê os artistas agem neste mesmo espírito, fixando as formas na estampa (a sua viagem pelo mundo em fragmentos). Como o pintor, que quer as cores dos elementos vivos, o corte é o movimento do tempo no homem. Isso é muito importante. De fato, pode causar espanto aos fantasmas. Na xilogravura a cor branca funciona como a soma de todas as outras cores do espectro, traduzindo para a realidade a visão dos vivos e dos mortos. Durante a impressão da matriz, um reino passa pelo outro espremendo nas fendas.

5. O tronco e a sua espessura são os responsáveis pelas peças do jogo. O tempo reside no tronco. Muitas dessas peças não se encaixem no tabuleiro oferecido pelo acaso no nascimento da imagem. Nós, caminhos carcomidos pelas témites, buracos e ninhos de formigas, besouros, lagartas e pulgões, seres tão pequenos quanto poderosos consomem as paredes deste templo. A estrutura da árvore converge para uma fantástica fábrica de contos e batalhas noturnas ressuscitadas pelos artistas, em tábuas e discos. O tamanho da imagem na xilogravura é oferecido como passagem para a história da espécie.

6. Os instrumentos, a bancada de trabalho constantemente carcomida por cicatrizes produzidas pelos dentes do entalhador, são lembranças atuais do esforço em quebrar a realidade. As mãos puxam uma rede invisível onde a imagem é prisioneira das primeiras ilusões. O pulso recebe sua dose diária de calos, uma maneira toda especial de sentir a raspagem da pele sobre as farpas, sobre os corpos de reis e rainhas nos canyons brancos e pretos da gráfica. A lâmina abre fendas como se fosse (e na verdade é) a própria luz. Neste jogo de xadrez a abertura é a ponta de um longo chicote que se ramifica em estradas, rios e cachoeiras livres nas bordas. Revoada.

7. Em pé, sentado diante da prancha ou de bruços, meio que preguiçoso, desajeitado, cortando a cor como a tenaz de um caranguejo no mangue separando o ouro da lama, o artista está suspenso entre os elementos dos sonhos e da paisagem (memórias e alucinações, não importa) passando como uma nuvem sobre o seu corpo, produzindo a dúvida, aceitando a sombra na beleza do maciço. Aproximando-se do limite entre as formas oferecidas pela matriz, o gravador vê e analisa as incisões. Acredita na união do passado com o futuro neste estreito generoso, onde uma efígie abre os olhos petrificando-o no tempo. Não resta dúvida: a carne da madeira torna-se pedra com o tempo. O gravador é um soldado em busca do Graal entre as coisas.

8. No Armazém eu encontro o mundo petrificado, ou seja, o lado de dentro de um antigo templo chinês onde as pedras gravadas eram organizadas para a frotagem com o carvão. Simples: pigmento, papel fino e força. Eram as gravuras nas pedras as primeiras tentativas de se transmitir uma história, uma imagem, um poema para o outro como destino divino. A caligrafia exigia força e delicadeza no cinzel. Depois veio a madeira que poderia ser consumida pelo fogo. Acho que esta maneira da imagem morrer encantou muitos artistas por que, a pedra, se pensarmos bem, é algo para a eternidade. Nunca morre e muito menos adormece. Mas o aço cantou melhor nesta possibilidade da matriz ser consumida em vida (como a árvore nos elementos naturais). Não faz mal. A xilogravura nasceu no berço chinês e veio para cá, como sementes transportadas nas mãos de um agricultor, de um continente ao outro. Somos chineses? Somos árabes ou europeus? Africanos? Não sei e fico imaginando que, ao realizar uma técnica artística tão antiga que remonta a linguagem como destino, se devemos dizer o país de origem. Ora, é o saber humano que passa como tecnologia, visão e invenção de instrumentos usados para abrir a paisagem, abrir a mente entre outras coisas, em tantos lugares sem nome ou com nome que, aparentemente, é o que importa nesta relação primeira com o mundo. Algo sem fronteiras. Algo que todos pudéssemos ver e aproveitar sem rótulos geográficos. Mas também, fico pensando se isso não seria como uma flor sem cor. A imagem é o lugar. O lugar é a arte-legião. O vento Norte ou o vento Sul. Sei lá! Uma espécie de abandono e conquista do saber no tempo. Mas não é assim que as coisas acontecem. Há o outro lado que a incisão confere, uma espécie de identidade, uma relação forte com o lugar para o artista. No Ateliê Funilaria e Pintura, as matrizes parecem ter sido colocadas por soldados que largaram momentaneamente as suas armaduras no estábulo. Cada figura um país. Cada animal ou planta, o brasão de sua família. Cada miniatura, a fôrma de um anel usado pelo aprendiz. A arte do encontro com o mundo visível é transmitida pela erosão destas armaduras-madeiras, uma espécie de mensagem na superfície castanha muito próxima da textura do couro. Os relevos são a visão de sua própria história, um mapa emotivo dos hemisférios do mundo. Quem ali não acredita nesses hemisférios? De onde eles surgem?

9. Estão gravados nas matrizes do Armazém os espaços que cada um conquistou para si no silêncio da vida em cativeiro por que o artesão é prisioneiro do seu amor pela lasca e pela vontade de estar no ateliê, costurando a sua cela. Nestas paredes onde antes eram penduradas mercadorias, estão os fósseis do tempo contemporâneo: as placas de um rinoceronte da Índia ou as celas rústicas, desenhadas para montar os dragões que nos visitam diariamente pelo humor. Tudo é possível e variado como o fractal das orquídeas que nascem no alto das árvores. Quem atinge as pétalas são os pássaros.

Para Biba Rigo, um passarinho sempre presente.

Ulysses Bôscolo, tarde de 17 de novembro de 2009.