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sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Carta: um pouco sobre a Serra do Mar.


São Paulo, domingo, 6 de setembro de 2009.

Caro Francisco,

Foi uma tremenda satisfação poder encontra-lo na Pinacoteca do Estado no lançamento do livro da Anne Louyot. Maior alegria ainda poder vê-lo com a camisa do Corinthias (apesar de no fundo torcer pelo São Paulo desde a mais tenra infância) e perceber como as cores pretas e brancas ficam bem em você. Realmente, o preto e o branco são atalhos (estradas, trilhas) com as quais os seus dedos estão acostumados a tocar e a construir com muito cuidado uma paleta toda particular. No momento Francisco estou envolvido com a xilogravura de topo de modo louco e apaixonado. Viajei três vezes para desenhar. As duas últimas viagens, sozinho para tentar encontrar uma solução e um começo para o trabalho. Mas na primeira vez estive com o Gilberto Tomé, o Otávio Zanni lá do Espaço Coringa e o Samuel Ornelas, um amigo do ateliê Piratininga. Viajamos através da Estrada Velha de Santos e pela Trilha do Lorena: um caminho feito de pedras construído na época de D.Pedro II para unir, de modo eficaz, o planalto com a planície litorânea por dentro da Mata Atlântica, ziguezagueando, fazendo picadas que logo eram apagadas pelos índios ou duplicadas cruelmente em direção ao abismo, tornando uma verdadeira armadilha para os primeiros colonizadores. Essa estrada ainda existe parcialmente e pode ser percorrida a pé, tal qual fizeram os viajantes antigos que chegaram ao cúmulo de carregarem um piano de Santos até planalto de Piratininga! Tentei neste projeto do PROAC transportar os cortes abertos na mata pelo asfalto e pelas pedras como cicatrizes (vistas por uma tomada aérea) diretamente para as matrizes que encontrei largadas na rua perto da minha casa no Butantã. Eram matrizes de madeira de eucalipto muito duras e compactas. Todas eram irregulares por que foram praticamente esculpidas pela moto serra criando, de modo espetacular, as formas da Serra do Mar que eu tanto procurava. Brutas, úmidas, cheias de insetos que ainda se alimentavam no interior do lenho, as madeiras estavam prontas para o corte com o buril e eu procurei prepara-las antes com instrumentos industriais típicos da marcenaria como lixadeiras elétricas e diversos formões grossos e curtos com os quais abria fendas e arrancava lascas como se estivesse esculpindo e não gravando simplesmente como de costume. Colocava o corpo diante de um desenho despertado pelo carinho das lâminas. Compreendo agora que queria me aproximar de uma essência. As minhas memórias eram habitadas pelas formas que se projetavam nas nuvens. As minhas xilogravuras Francisco se transformavam em linhas brancas atiradas no espaço (seja o ar puro da reserva ou a planície negra dos sonhos na própria matriz). São possibilidades reais de se imaginar a paisagem viva transportada sobre o papel. A imagem era um pedaço de chuva vista bem distante ainda no cume da Serra do Mar ou uma borboleta gigante do tamanho de duas mãos abertas sobre o chão. Gravei as sensações do meu corpo quase que atirado sobre um vazio, um silêncio raro e generoso enquanto fotografava e caminhava pela Estrada Velha do Mar, a mesma descrita pelo músico Roberto Carlos. Diferentemente da Trilha do Lorena este percurso é asfaltado com muitas curvas largas. Pude como um pássaro observar todo a planície litorânea recortada por rios sinuosos. Um fio de luz sobre um tapete verde e denso como musgo. Estava na beira da mata. Do alto da serra do Mar percebi um desenho topográfico instigante, complexo, onde os elementos ganhavam uma estranha síntese. Era parecido com o disparo de uma linha feita de lápis sobre o meu caderno de anotações com desdobramentos até então imprevisíveis. Percebi que queria o rio, o mar, as montanhas, o céu e as nuvens juntos, agrupados na erosão dos instrumentos, ou seja, uma espécie de panorama onde as minhas memórias estivessem construindo sobre os topos a imagem das primeiras sensações diante do poder da natureza. Os meus trabalhos Francisco se transformaram em linhas puras e livres que descrevem de modo rude-sensível a trajetória das nuvens. Em cada imagem construída nas gravuras de topo procuro o peso do céu e da luz por que acredito e tenho fé que a técnica da xilogravura sob o impacto do aço na madeira maciça projeta o corpo para um espaço útil, habitado pela esperança como origem. Algo primitivo e agressivo pelo rompimento das fibras por força muscular, mas ao mesmo tempo contemporâneo em relação às mudanças ocorridas na geografia, seja por tempestades ou pelas ações das construtoras que rapidamente modificam pelas máquinas uma paisagem histórica. É um espaço denso habituado a pensamentos volantes. Uma relação sempre de reconstrução de memórias e observações em uma grande cidade como São Paulo. Não procurei gravar na natureza pela logística e pelo peso bruto das matrizes mas receber certos estímulos sensoriais ou visões de força que um lugar fechado não me proporcionaria. No momento da incisão temos um mistério, uma verdade, uma espécie honesta de alegria na superfície rígida. Tais forças surgem quando voltamos para ateliê e rompemos as fibras buscando a forma na neblina. Estas estampas, medindo cerca de 95 x 95cm são pequenas em comparação ao papel-tecido que utilizei. O papel é na verdade toda a imagem por que envolve a geometria da matriz com uma porosidade muito próxima de uma névoa. Porosidade não é a palavra exata para descrever este suporte leve e fino de apenas 20g, que imaginei como uma manta que pudesse respirar sobre a imagem gravada na matriz. O papel que utilizei é uma película sintética usada para forro em ternos e outros vestuários, comprados na Rua 25 de Março em uma das tantas lojas de tecidos que existem por lá. Procurei pesquisar papéis japoneses de alta qualidade, mas os preços são impraticáveis. Algumas folhas chegavam a custar R$ 60,00 reais e para o que eu pretendia teriam que ser no mínimo 30 folhas! A idéia da neblina, de uma névoa, de algo que é leve e branco em essência e que por momentos encobria completamente a paisagem permaneceu neste ano como uma idéia fixa, mágica, possível de encontrar nas atividades industriais e populares. Veja professor que a arte se cercou, como matéria para a impressão no caso da gravura, de materiais artísticos especiais e caros. Desde os tempos da faculdade isso sempre me incomodou por que eu via, quando andava pelo comércio do centro da cidade, que o material às vezes barato e duradouro era superior ao usado por artistas que gastavam fortunas em lojas especializadas em ARTE. O material barato era aquele usado por ourives de rua ou marceneiros de beira de esquina que se esmeravam em trabalhar com o mínimo e produzindo como obra o máximo de requinte. As ferramentas ganhavam com o tempo os contornos vivos das mãos no processo caloso. Assim, na minha ingenuidade em relação aos topos, procurei comprar no comércio de materiais de construção os meus instrumentos de desbaste. Procurei algo forte para criar rachaduras. Cada vez mais Maringelli quero me aproximar das artes com ramificações possíveis e usuais no comércio popular e principalmente na indústria. Quero comprar assim que possível uma moto-serra! A região da 25 de Março é um labirinto de opções para o papel sintético às vezes usados nas saias, camisas e sutiãs das prostitutas...ora, um souvenier para imagens vistas em viagens, livros relacionados com a história da ocupação do litoral do Brasil.
Uma introdução aos Portos talvez. A neblina hoje é um capítulo à parte. Lembro da leitura do Diário de Cristóvão Colombo onde ele descreve uma situação artística no meu modo de entender. Quando o navegador estava próximo da região da Antilhas, uma espessa neblina envolveu toda a embarcação por dois dias. Nada se via além daquela umidade branca. Mas o capitão olhava atentamente ao redor e percebia uma mancha que aparecia e desaparecia igual a um imenso lagarto nas pedras ofuscado pela luz do sol. Ele sabia que estava próximo da terra por que o lampião do navio estava cheio de insetos. Parte dos marinheiros entraram em pânico. Pensavam que era um monstro circulando a nau prestes a atacar. O suprimento de água estava no fim o que aumentava ainda mais o delírio. Pela manhã finalmente, como se um artista levantasse o papel de sua matriz (ou um deus soprasse as nuvens) o céu se abriu e a mata próxima das rochas (em um inacreditável quebra mar) mostrou-se por inteiro. Era uma planície densa e verde, cheias de pássaros coloridos e esfuziantes. Colombo abriu os braços e os homens profanaram urras de felicidade! A imagem, o destino, o topo, seja o que for, sempre esteve lá Francisco. Para o artista que busca no material as suas formas é uma questão de fé poder enxergar e acreditar que a coisa possa respirar. A neblina é um manto que esconde a topografia completa de um lugar. Nos meus sonhos, aliado ao que eu percebi na gramatura do papel japonês, a neblina é a grana de que precisava para tentar compor a topografia da paisagem de Santos e das estradas como cortes de luz na superfície da Serra do Mar. Por intuição estamos sempre na borda. Tal leveza é apresentada pela cor branca e quente que, de algum modo é absorvente. Todo artista em seu processo de trabalho pela construção da imagem encontra-se em uma neblina tanto quanto Cristóvão Colombo em busca de um território de ação, em busca de uma imagem além das dificuldades impostas pela viagem. Não é o tamanho do ateliê que pode enfim, determinar a obsessão do trabalho nem o sucesso de uma empresa que a todo o instante tenta, contudo, quebrar a ampulheta do tempo, mas a certeza de que aquilo existe sem nem mesmo possuir forma. Veja pelos seus auto-retratos, veja pelas suas pinturas como a imagem pode nascer do olho em direção ao linho ou aos veios da madeira absolutamente nus. É a presença do artista que confere a matéria um grau elevado de importância. A neblina Francisco é sem dúvida presente. O calor é a possibilidade de ver e agir sobre determinada cor, sobre determinada beleza, até o momento de pegar no pincel ou na ferramenta e decidir. Por que toda a obra de arte é fruto de decisões importantes no tempo. O artista é o próprio tempo transfigurado em ação contemporânea dos fatos descritos por ele no ateliê. O mundo permanece nas mãos! A xilogravura é o berço de uma dança muito antiga que persiste como construção da luz no corpo do homem (um artesão simples na aparência) e extremamente complexo por dentro tentando mover-se por pressão na paisagem capital do papel.

Um grande abraço Maringelli,
Ulysses Bôscolo.