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quinta-feira, 11 de junho de 2009

Outono.











No ateliê de gravura, podemos perceber o entusiasmo de algumas pessoas ao imprimir, com a tinta gordurosa e antiga, a placa de cobre. Nesta série de imagens postadas hoje, estou auxiliando a educadora Flávia Cunha Fernandes a fazer a sua primeira gravura em metal. Forneci uma placa de cobre e rapidamente ela foi coberta por uma floresta de linhas. Procuro mostrar o processo de impressão aliado ao fogo provisório, usado para aquecer a placa. Estava muito frio. Se pensarmos no passado, essas tintas eram ainda mais pesadas e mais oleosas. Um grude preparado nos fundos de um mosteiro por que, as tintas gráficas eram chamadas de veículos, ou seja, a chama pela qual as páginas de um pergaminho eram impregnadas pelo espírito e a palavra do Senhor, durante a impressão das bíblias após a invenção dos tipos móveis por Gutemberg, proporcionando um alcance no conhecimento e na liberdade, nunca antes vistos na história da humanidade, substituindo ao longo dos séculos, o trabalho dos iluminadores e escribas que copiavam a mão os livros, ilustrados geralmente com belíssimas pinturas. As bibliotecas são as maiores riquezas da idade média. A ilustração dos volumes ficou a cargo da xilogravura e em seguida da gravura em metal. Veículo quer dizer móvel, uma estrada para os olhos, uma passagem para a beleza das formas na alma, em virtude das coisas inspiradas pela imagem. Para quem teve a oportunidade de assistir ao filme do Millos Forman - Sombras de Goya, existe a reprodução exata de um genuíno ateliê de gravura em metal do século 18. As coisas do século 15 para cá, mudaram muito pouco. Ainda podemos respirar a aura dos artistas e antigos mestres impressores devido aos materiais empregados no movimento circular de um ateliê de gravura. O conhecimento é algo tátil. Quem pinta, esculpe, grava e escreve, sabe muito bem das possibilidades de estar ao lado de Deus, por poucos instantes e senti-lo, no ambiente de trabalho, seja de qual natureza for. Uma presença sublime. Goya faz parte de uma das minhas miragens, como artista e como professor.
São apenas cinco ou seis minutos de cinema útil, mostrando os impressores do artista realizando todo o processo pesado de criação de uma água forte e de uma ponta seca. Desde a preparação da chapa, passando o verniz e encaminhando para o banho de ácido até a retirada da camada de cera e a impressão, colocando espessas raspas de gordura negra com um pedaço de feltro imundo e depois, limpando tudo com trapos e com a mão. Colocam a placa gravada e cheia de tinta no berço. Depois o papel por cima, cobrindo com o feltro de uma prensa inteiramente de madeira cujo o cilindro, era ligado diretamente no eixo da cruzeta em forma de estrela. A pessoa, para rolar a máquina, teria que usar as mãos e os pés numa força brutal! Aqui, as prensas são de ferro maciço. Foram desenvolvidas após a revolução industrial para suportarem as imensas tiragens que a Gráfica, como um todo, proporcionou, principalmente com a invenção dos periódicos, ou seja, os jornais.
Possuem ao invés de cruzeta, uma manivela com duas reduções, que facilitam e muito, a impressão. No filme, podemos perceber como o ateliê era um tanto escuro, iluminado por tochas e velas além das janelas. Um renascimento do espírito. A luz que devora o ar, dançando como a imagem gravada e livre. Coloco no final do post a fotografia de uma planta, que teve o galho quebrado por uma tempestade e que agora, está nascendo de novo... em uma nova ordem neste outono.













quarta-feira, 10 de junho de 2009

A Chama.







Na gravura em metal, especialmente em técnicas diretas como o buril e a ponta seca, podemos visualizar a energia das imagens realizadas sobre a placa de cobre ou sobre o zinco, latão, acrílico e outros suportes alternativos e resistentes para a impressão no papel, de maneira privilegiada. É desta energia que também observamos como a linha “suja”, cinzenta em alguns casos, crua e tremula pode compor uma paisagem interna difícil de ser aceita pelo aluno como a sua primeira manifestação de força e de vontade frente ao material bruto e duro. O cobre vermelho, quando maculado, expele uma espécie de fuligem nos sonhos-densidade sobre a superfície. Uma luz quente feita pelo tempo durante o pôr-do-sol, entre outras estações, turvadas pela luz do metal.
O trabalho do gravador se resume a isso:1. Tempo para o fragmento.2. Força para dividir a luz e explorar pela incisão a cor das estruturas em movimento-ambiente.Existem sempre na matriz duas saídas para a imagem que logo (pela estampa) é transportada sobre o papel.Na primeira, posso chamar de memórias alçadas pela esperança do aluno de poder apreender a extrair e multiplicar pela natureza do meio algo de sua experiência no tempo, imerso nas ligas dos metais assim que realiza o trabalho de corte. Devemos ter sempre em mente esta via dupla de imersão vermelha, um espelho do nosso próprio corpo respirando e expirando a vida que sai dos pulmões pelas metáforas do sangue arterial ou venoso, diante das lembranças que constroem por força muscular, a imagem (o arquivo que como um peixe preso numa rede) é transportado para fora do corpo e depositado sobre a placa, através das rebarbas da ponta seca ou da linha luminosa do buril. Por técnicas diretas temos um diagrama das forças vivas. A segunda saída é a observação dos elementos disponíveis para os sonhos, para a acidez das formas que devem ser interpretadas como estruturas circulares, ou seja, estruturas que estão ao redor do artista naquele momento de ateliê onde os materiais de impressão surgem como porta vozes dos seus sonhos. As prensas transformam-se em áreas portuárias. Os instrumentos em pequenos galpões vistos do alto de um morro. As mãos em gigantes que agarram tudo, largam tudo, apertam, raspam, escolhem, movendo-se fortes pela mesa-paisagem, procurando estabelecer na matriz uma lavoura. Constroem um pomar na qual mais tarde o artista poderá colher os frutos verdes e maduros (não importa), perfeitos no tempo de um conto de fadas. Aliás, em muitas oportunidades o tempo desaparece para dar lugar às possibilidades da observação e da memória que exercem atuação intensa no coração enquanto trabalho lúdico criando um mundo “gasto” pela passagem da longevidade. São lentos e pesados os fardos da construção da imagem em relação à estampa. Quando a matriz é colocada sobre a prensa: horas, semanas e até meses de trabalho são afunilados pela pressão da máquina sobre o papel. A tinta de modo mágico condensa estas forças vivas que marcaram a placa pelo visto e o imaginado, pelo desejado e o perdido, pelas cicatrizes da passagem dos sonhos sobre o material, pelo tempo criado molecularmente entre as incisões. A tinta irá tingir as fibras do papel e criar com isso um mundo de relevos e nascentes gráficas onde a alma do artista vai habitar e viajar seguindo os mistérios da polpa. A matriz como uma arca cheia de riquezas é enterrada no papel com o alçapão aberto. Observamos a estampa (muitas vezes sobre o papel macerado, quase “mastigado” pela prensa) como a possibilidade de entender por signos geográficos algumas tensões delicadas que a mão (pelo toque de corte) pode enfim exercer sobre o material dúctil-puro, impulsionado (na planície) pela observação e pela memória. Em ambas, o aluno-artista estabelece o significado da palavra tempo cobrindo-o de uma magia difícil de ser explicada por que o olho (pelo papel) é transportado sobre o lombo desta entidade que se desfaz e se perde facilmente na luz. Cabe a linha reforçar esta ligação com as coisas reais. A linha gravada por força resgata o tempo da imensidão do olhar, da imensidão de um mundo de luz, um mundo de nuvens, para ser arremessado diretamente para as cápsulas escuras das fendas. É estocado como alimento nas incursões musculares pelas ligas das matrizes através da sombra. Também nas rebarbas leves e pesadas como muros feitos de grãos de arroz, feito de tijolos: é guardado como cor, como movimento e como mancha e as escamas antes brilhantes logo escurecem pela atividade do corte bruto, abrindo canais para as raízes dos pensamentos estruturados nas formas do céu.
Torna-se um peixe que vive sob o lodo, uma montanha habitada temporariamente por um alpinista, os passos de um andarilho circulando na porta de uma padaria, as roupas de um rei dobradas sobre a cama, alguma marca, algum conto, alguma forma consciente de representação de um mundo vermelho, cinzento, dourado, esquecido, reconhecido, sonhado, disperso na atividade humana em desenvolvimento, em expansão pelos sonhos ácidos do papel além da marca d`água.
Ulysses Bôscolo, madrugada de 2 de abril de 2008. Em processo de modificação, dia 10 de junho de 2009
Sobre O Teorema das Forças Vivas.